Me odeia e faz cena
Ninguém pode almoçar com todos aqueles trovões no estômago mesmo. Então sobe minhas escadas, vacilante. Sou o último andar, lá no alto e vertiginoso. Sobe com medo, degrau por degrau, agarrada ao corrimão, com presentes comprados pra si mesma, por distração. Já faz cena. Tem certeza absoluta de querer estar ali mesmo, agora, mas toda vez a ladainha: desconfia de que deveria querer outra coisa, outra pessoa. Nas escadas, pensa se não tá confundindo pessoa errada com pessoa inadequada. Sempre fui moço bom, em minha defesa, mas posso ver o que dá pra fazer. Contudo, os futuros que prometo nunca chegam.
A porta deixei entreaberta. Já sabia que viria, pularia o almoço sem arrependimentos. Ninguém come ao meio-dia com trovões molestando a garganta. Eu durmo seminu, enroscado em lençois obscuros, escabelado e vagabundo, minhas identidades pelo chão. Discos, livros, restos de comidas de microondas. Ela entra, mas sem soltar a bolsa, e não diz coisa. Sente o ódio, só porque é de praxe. Mas não arrepende-se ainda. O cheiro do quarto paralisa seus pensamentos. A música do Chico Buarque, à capela, no modo repeat, lá longe, de propósito, só pra incomodar.
Fala com minhas omoplatas enquanto durmo - "Não-Quero-Isso", "Posso-Morrer-Sem-Isso", "Mereço-Coisa-Melhor". E outras rezas. Mas tira as sandálias, veda a saia e senta por sobre os tornozelos. E alisa meus cachos negros e amassados. Me remexo. Abro os olhos devagar. Suas coxas. Já sabia que viria. E ela diz que quase não veio. Medo de doer outra vez. Eu brinco, de voz remelenta, que os objetos cortantes tão super bem guardados.
E daí, de que valeria o arrependimento e a honestidade se morrêssemos amanhã? Quem daria bola para as cenas que ela faz nessa uma hora cheia, se acaso saindo daqui aturdida, um ônibus pode muito bem derrubá-la no asfalto. Todos nós seremos enterrados com todos nossos erros e apegos e nada que se passar por aqui servirá de epitáfio. Ninguém vai saber, ninguém vai lembrar, porque só lembra quem sente, quem sabe.
Faço gemidos de resistência em despertar. Fico impressionado como um tornozelo feminino me faz tão bem. Esses, em especial. Lambo sua perna grossa, meio brincando, a boca ainda morna e sebenta, sem conseguir levantar. Diz que ama meus lábios e tudo que vai grudado neles. E que mesmo eu dormindo até hora dessas, sou quem faz seu sangue circular. A fala mansa. As ideias mirabolantes. As tortas de palmito. O jeito de coçar a cabeça num só dedo, o indicador. Sempre oportunizando todas as chances de errar. Pisando sempre na ponta dos pés. A eletricidade da minha mão na perna. Aquele eterno risco de explosão. O cheiro daquela perna faz parecer que o quarto é dela. O quarto é todo dela.
Faz cena, se ergue e tem uma recaída na cadeira giratória do computador. Brinca no teclado, debocha dos meus versos bonitos. São pra ela, digo. E pra outra qualquer, ela diz, querendo saber coisas sem perguntar. Me espera perder um pouco da segurança e toda a paciência. Já se foram vinte minutos. Vou à ducha. Ela olha meu espelho admirando aquele lado bê do seu caráter, aquele novo traço de personalidade. Sente os trovões no corpo inteiro dividido, porque metade dela sente-se traída e a parte traidora sente-se culpada por isso. E ela sente ódio. A hora passa, eu fico rindo. Ela me odeia e faz cena.
Mas logo perdoa a si mesma. E me perdoa também, sem eu pedir clemência ou coisa alguma. E arruma o penteado, soltando mais fios poéticos de franja. Os olhos melancólicos feito o mar quebrando bonito. Grita do quarto frases com "você e eu", "mim e você" - Você e eu não somos nada. Não existe futuro entre mim e você. Ela faz cena, porque sabe que cabemos muito bem no mesmo andar, na mesma hora, no mesmo quarto, na mesma cama, mas nunca na mesma palavra: nós.
( Gabito Nunes)
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